O Malabarista: os melhores artigos de Arnaldo Jabor

Infância - I

Nós morávamos em casa de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira. Tudo era baldio, cambaio, toda a precariedade do subúrbio era visível a olho nu. Nas famílias vizinhas sempre havia uma ponta de silêncio, olhos sem luz, depois de casamentos esperançosos com buquês arrojados para o futuro que morria aos poucos. Não era a tristeza da pobreza; a tristeza era quase uma “virtude” que as famílias cultivavam. Nas ruas da infância havia uma infelicidade negada, mas visível, uma tristeza não reconhecida, uma fome vazia.

Não sei o por quê, em vez de viver, eu via os outros vivendo.

Um dia, quando conheci os rudimentos da vida sexual, quando me contaram de ‘papai e mamãe, de pau e boceta’, passei a ver tudo sob essa ótica; sim, essa era a ‘força estranha’ que movia as pessoas, apesar de ser tratada como um segredo dos adultos. Todos os atos me pareciam motivados pelo sexo: dinheiro, poder, amor, tudo tinha como fim a reunião de partículas, a colagem de átomos, a realização de um prazer que eu nem imaginava.

As noites eram mais escuras. Volta e meia, faltava energia; tudo se apagava sùbitamente (com gritos de “Aiiii!”) e, minutos depois, a luz voltava, com um “ahhhh!” geral de alivio nas ruas. Quando tive sarampo, puseram um papel vermelho na lâmpada do teto. O quarto ficou inflamado, como eu. Da rua vinham ruídos remotos: cachorro latindo, o pregão do vassoureiro, gritos de crianças, cigarras. A tarde caia roxa, como a luz do quarto.

Era curta minha paisagem noturna de menino: rua, poste amarelo, fogueira no capinzal, a luz verde no rádio de meu pai, onde eu ouvia o “Anjo”, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças com a lua tremendo na água. De noite, eu era um menino triste. De dia, o sol era meu, a chuva era minha, minhas eram as nuvens-camelo, as nuvens-girafa, que eu contemplava deitado no chão de terra onde as formigas eram minhas, os caramujos eram meus, sua gosminha madrepérola era minha.

Eu já percebia dramáticas fragilidades na minha família, uma infelicidade latente na sala, gritos atrás da porta do quarto, minha mãe em prantos diante de meu pai enfurecido de ciúmes, pois ela saíra sem meias nylon.

Eu devia ter uns cinco anos.Um dia, começaram a falar num tal de “eclipse”. O que era isso? O radio anunciava o fato o tempo todo: “o mais importante fenômeno, o maior eclipse da historia da ciência, o eclipse total do sol!” O Brasil era o lugar ideal para observá-lo. Explicaram-me e eu não entendi. Chegavam cientistas estrangeiros, aparelhos, comitivas que os locutores celebravam. O Brasil se sentia importante, pois servia ao menos de camarote de eclipse.

Eu fui para o quintal, olhar o céu. A molecada olhava o céu. Até que aconteceu. O radio berrava a hora H, como narrando um jogo de futebol: “Olha lá, olha lá! Tá chegando!” Aos poucos, o sol foi invadido por uma sombra, e tudo ficou negro no meio do quintal. Caíra uma noite súbita, cinzenta, sinistra — por quanto tempo? Os passarinhos pararam de piar, as folhas ficaram pretas, o vento ficou audível, minha casa se apagou ao fundo, com meu pai, minha mãe e as empregadas na varanda, todos olhando para cima.

Eu olhava o sol negro, mas também via a minha família toda ali.

E então, no escuro do eclipse, vi a fragilidade daquelas pobres pessoas de subúrbio, eles, eu, batidos por um vento frio, trêmulos de espanto com o céu, nós todos , ali, desamparados.

Baixou-me a sensação de que a casa, minha mãe, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça rezando, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também um dia, pois tudo tinha ficado mais longe. Minha vida de criança solitária foi deslocada pelo eclipse: o sol não era mais meu, o céu, meus pais, nada era fixo, nada era nosso; eu senti que minha pobre família viajava num tempo escuro, sem controle. No Brasil, havia gente muito mais importante que nós, os estrangeiros, os cientistas, e nós ali, de cara para cima, olhando um céu preto. O mundo tinha vida própria, o sol não se importava conosco, emocionados e frágeis.

O radio falava em “fenômeno”. Que fenômeno? Naquele dia, entendi confusamente que “fenômenos” éramos nós.

 

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